Estava velho, o velho tocador de blues. Subiu os dois lances de escada com todo o peso dos anos sobre suas costas. Estava velho e gordo. Pobre e sozinho. Sem amigos, sem a fama, sem as noites de uísque e drogas. Pior, sem as muitas mulheres. Entrou no pequeno apartamento de dois cômodos. A mesma escuridão e cheiro da estreita escadaria de madeira. Sentou na cama. Cansado. Respiração pesada. Tudo muito desarrumado. Desorganizado. Mofo, poeira e sombras. Sabia que aquele era seu fim. Seus últimos instantes. Não estava triste ou com medo. Ao contrário. Sorriu quando pegou a garrafa do seu melhor uísque, que guardara para este momento. Primeira dose, num só gole. Saboreou e em seu íntimo agradeceu por tudo o que vivera. Mais algumas doses e sentia a presença da morte em seu quarto. Era quase possível vê-la, calma e tranquila, na poltrona do outro lado da sala. Sorrindo se perguntou: a mando de quem ela trabalha? Não tinha medo da morte. Sabia, sentia que àquela noite ela o beijaria. Não pensava no céu ou no inferno. Não se preocupava com isso. Lembrava, com alegria, porém sem saudades, dos velhos tempos de estrada, bares e música. Do velho som de sua guitarra. A morte continuava a olhar. O relógio ruía num tique-taque soturno. A Morte fitava-o. Faltava pouco. Muito pouco. O Velho tocador de blues, com muito esforço e ofegante, puxou uma case de baixo de sua precária cama. Sacou sua velha guitarra. A antiga companheira. Sua amante favorita, seu verdadeiro amor. Não havia envelhecido. Estava acima de questões terrenas e temporais. Era a personificação do blues. Do melhor do blues. Lembrou do uísque e viu que faltava pouco. Poucos dedos de boa bebida. Poucos dedos de vida. Neste momento não mentiria se afirmasse que viu a Morte. Que a viu sentada do outro lado do pequeno, sombrio, sujo e desorganizado apartamento. Encheu o copo com o que restava na garrafa. Era sua última dose. A Morte fitava-o. A Morte via o velho negro e gordo, sentado num farrapo de cama. O velho não tinha medo. Estava sereno e tranquilo. Parecia até feliz, olhando a velha guitarra. A Morte olhou para o relógio e para o que restava da última dose do velho tocador que viera buscar essa noite. Neste momento, Ela foi surpreendida por uma triste e longa nota da velha guitarra. Fechou os olhos. E abriu quando o tocador de blues, dedilhava uma segunda e ainda mais triste nota. Um sôfrego e pulsante solo. Olharam-se. Sim, se olharam. O velho e a Morte. Sorriram um para o outro. Antes da última dose. Do último suspiro. Do último blues. Ambos consentiram. O velho e a Morte, que naquele momento também desejou uma dose, sem gelo. Ele tocou. Algo triste. Notas de dor. Tristeza, dor e lamento. O que somos, além disso, quando chega a última dose? O derradeiro encontro? Era uma beleza de lamento. Uma maravilha de dor. Uma alegria de tristeza. Velho, guitarra e som eram um só. Eram música. Eram blues. Genuíno e visceral. Celeste e demoníaco. Ao fim uma última nota. Longa e distorcida. Sorriu. Bebeu o que restava de uma só vez. Saboreando como nunca fizera em sua vida desregrada e transgressora. Descansou o copo, fechou os olhos e esperou. O tempo passava lento e arrastado. Ouvia sua respiração pesada e seu coração parecia explodir. Ficou ainda um tempo de olhos fechado. A última nota ainda estava presente em seu quarto. Esperou. Nada. Abriu os olhos e não sentia a presença da Morte. Fora embora. Não resistiu a última nota. Rabiscou o nome do velho da lista e o deixou com seu lamento. Voltaria em outra oportunidade. Não se sabe quando. Talvez quando estivesse com vontade de ouvir o velho tocador de blues.
Epilogo01: Quando jovem, diziam que tinha o corpo fechado;
Epilogo02: Desceu para comprar uma outra boa garrafa de Uísque;
(Alexandre Pardal)
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